Já vou começar pela resposta: NÃO! No entanto, eu preciso explicar algumas questões para que você não caia na falácia que – há algum tempo – vem contaminando a mente dos brasileiros.
Etimologicamente falando, não há qualquer registro da expressão “criado-mudo” como o “criado da casa na época da escravidão que deveria ficar ao lado da cama sem fazer qualquer ruído”. O grande problema é que se tem propagandeado que isso existia e, quando apresentam a informação anterior, argumentam que: não é pelo fato de que não se tem registro que não existiu. Ora, isso é fazer história revisionista e, pior, sem qualquer fonte primária: erro crasso, falha acadêmica ou desonestidade intelectual – chame como preferir!
O fato é que a origem do termo remonta à língua inglesa.
Acompanhe o raciocínio extraído do meu livro novo – “Moendo Mitos” – que será, em breve, lançado:
De quando em quando, somos bombardeados por algumas velhas novidades, que pretendem, de alguma maneira fantasiosa, reinventar a roda. Uma dessas velhas novidades é o caso da expressão “criado-mudo”, que se refere àquele móvel que fica ao lado da cama, aparentemente inocente. Segundo algumas lendas que circulam por aí na boca do povo, não é tão inocente assim.
Bem, acontece que estão se multiplicando por aí histórias de que a expressão “criado-mudo” teria uma origem racista e que remontasse à escravidão, alegando que esse nome se referia à pessoa que trabalhava nos serviços domésticos da casa e que, por alguma razão que até agora ninguém explicou, seria obrigada a ficar em pé ao lado da cama do “senhor” da casa grande, imóvel e sem falar palavra alguma.
Como de costume, a narrativa consegue arrebanhar a pessoa incauta que, ao ouvir sobre o sofrimento alheio, pensa “meu Deus, eu preciso parar de usar esse tipo de expressão”. Também é preciso dizer que algumas marcas da indústria moveleira já hastearam essa bandeira. Afinal, marcas com consciência social (ainda que sem fundamento histórico ou lógico) tendem a vender mais, pois entregam aquilo que o mesmo povo incauto espera ouvir.
Vamos a uma maneira de desfazer essa pseudoetimologia. A origem do termo em questão é de uma tradução adaptada do termo dumbwaiter, da língua inglesa. Decompondo esse termo da língua inglesa, temos dumb, cuja origem é dumbs (Mudo, no gótico), e waiter, que significa “garçom” ou “atendente”, cuja origem é wahten (estar de guarda, no alemão). A mesa em questão designava um pequeno elevador de carga usado em restaurantes. A definição de “dumb-waiter” no dicionário etimológico em língua inglesa é:
also dumbwaiter, 1749, “a framework with shelves between a kitchen and a dining-room for conveying foods, etc.,” from dumb (adj.) + waiter; so called because it serves as a waiter but is silent. As a movable platform for passing dishes, etc., up and down from one room (especially a basement kitchen) to another, from 1847.
Também “dumbwaiter”, 1749, “uma estrutura com prateleira entre uma cozinha e uma sala de jantar para transportar alimentos etc., de mudo (adj.) + garçom; assim chamado porque serve como garçom, mas é silencioso. Como plataforma móvel para passar pratos etc., para cima e para baixo de um cômodo (especialmente uma cozinha no subsolo) para outro, a partir de 1847. (Tradução livre)
Nota-se, sem muito esforço, que a origem do termo “criado-mudo” nada tem a ver com alguém que era obrigado a ficar em pé silenciosamente ao lado da cama de qualquer pessoa. Não é muito curioso o fato de termos passado todos esses anos sem que esse tipo de fato tivesse chamado a atenção? Isto é, como é possível, desde o fim da escravidão no Brasil, ninguém ter notado a existência desse móvel de nome que reforçaria questões de preconceito no país? Bem, os livros de história não registram essa origem, não registram a terminologia “criado-mudo” para designar o móvel ou a pessoa que deveria segurar um copo d’água ao lado da cama. Isso é mais um caso de revisionismo narrativo da história, ou seja, a partir de uma narrativa que aparenta ser verdade, toda a história passa a ser revista. É o que eu chamo de “etimologia freestyle”: o “pesquisador” empreende seu trabalho com os critérios que mais agradam e o resultado, usualmente, é uma distorção teórica.
Agora, é evidente que isso não significa que não havia escravos no Brasil, que escravos não foram duramente maltratados e que sobrevivem, em nossa língua, expressões cujo uso é notadamente racista. Acontece que “criado-mudo” não é uma delas.
https://www.etymonline.com/word/dumb-waiter (10/06/2021)
https://pt.wikipedia.org/wiki/Criado-mudo
https://archive.org/details/EncyclopaediaBritannica1911HQDJVU
Segue o meu vídeo sobre o assunto: